Cura é o possível de hoje
- Girlande Oliveira
- 9 de ago.
- 7 min de leitura
Cura não é um ponto de chegada perfeito. Cura é uma conversa contínua com a vida, um exercício de honestidade consigo mesma. É menos sobre tomar decisões definitivas e muito mais sobre escolher, hoje, o que é possível. O que te desgasta menos. O que mantém o seu coração respirando com algum conforto até a próxima hora. Quando entendemos isso, o peso diminui. Não porque a dor desaparece, mas porque paramos de nos cobrar um final feliz imediato e começamos a cuidar do caminho.
A gente aprende desde cedo a admirar quem decide de uma vez, quem muda tudo em um gesto. Na prática, quase nunca é assim. Depois de um rompimento, de uma perda, de um diagnóstico, de uma mudança inesperada, a cabeça pede respostas prontas. O corpo, porém, precisa de tempo. E o tempo da cura se parece com maré. Vai e volta. Tem dias de avanço, tem dias de recolhimento. Quando você se autoriza a acompanhar esse ritmo, sem se trair, a cura acontece por dentro, silenciosa, paciente, firme.
Existe uma pressão invisível para fechar capítulos logo. Para “virar a página” com frases bonitas e fotos novas. Só que a cura não se apressa com hashtags. Ela se alimenta de gestos pequenos e sustentáveis. Às vezes é escolher não responder agora. Às vezes é tomar água, abrir a janela, escrever três linhas num caderno. Às vezes é dizer sim ao descanso e não ao que te suga. Esse discernimento entre o que te nutre e o que te drena é uma bússola. E bússola não te entrega a estrada inteira. Te entrega a direção do próximo passo.
Fazer o possível no momento presente não é mediocridade. É sabedoria. É reconhecer limites sem desistir de si. É perguntar com carinho: o que dá para fazer hoje que me ajuda a seguir?
Se a resposta for algo simples, como tomar banho ouvindo sua música preferida ou mandar mensagem para uma amiga confiável, então que seja simples. O simples não é pouco. O simples é o tijolo que ergue a casa. E casa boa não se constrói em um dia.
Talvez você se veja cobrando de si um veredito. Fico ou vou. Término ou reconciliação. Mudo de cidade ou fico mais um ano.
Existem momentos em que a decisão precisa chegar, claro. Mas muitas vezes ela amadurece melhor quando você cuida do que está ao alcance agora. Perguntas ajudam. Se eu decidir hoje, decido com medo ou com clareza? Isso me aproxima de mim ou me afasta? O que me desgasta menos agora e me mantém íntegra? Responder com honestidade abre espaço. E quando a gente cria espaço interno, a decisão certa encontra lugar para pousar.
Há também a culpa que nos espreita quando diminuímos o ritmo. Como se descansar fosse sinal de fraqueza. Não é. Descanso é estratégia de cura. O corpo sabe. Quando você dorme um pouco melhor, respira um pouco mais devagar, come um pouco mais real, sua mente ganha chão. A alma agradece. E quando o corpo e a alma se sentem incluídos, as emoções param de gritar e podem conversar. É nessa conversa que você percebe que não precisa consertar tudo hoje. Precisa cuidar de você enquanto vive o hoje.
Gosto de pensar na cura como jardinagem. Tem dia de adubar, tem dia de podar, tem dia de contemplar. Não se puxa a flor para ela crescer. Dá água, dá luz, tira os espinhos que machucam. Fazer o possível no presente é isso. É olhar a planta que você é e perguntar do que ela precisa agora. Talvez seja sol. Talvez seja sombra. Talvez seja silêncio. Talvez seja uma boa risada. O jardim de cada uma é diferente. O que funciona para a sua amiga pode não funcionar para você. Comparar ritmos só rouba energia.
Falar de energia é essencial. Porque o que te cansa diz muito sobre o que você precisa mudar. Observe os vazamentos. Pessoas com quem você sempre termina menor do que chegou. Conversas que te deixam tensa por horas. Perfis que você consome e, no fim, se sente menos viva. Aos poucos, ajuste. Não por raiva, mas por amor próprio. Troque o que te aperta por vínculos que sustentam. O que te desgasta menos é um bom norte enquanto você se reconstrói. Isso não é fuga. É cuidado inteligente com a sua capacidade de seguir.
Talvez hoje o possível seja apenas não se maltratar mentalmente. Ou admitir que está cansada. Ou permitir que a tristeza sente do seu lado sem que ela vire casa. Emoções são visitantes. Quando são acolhidas, se organizam. Quando são expulsas, fazem escândalo. Existe força em dizer para si: eu não dou conta de tudo, mas eu dou conta do próximo passo. E isso basta por agora. Essa frase é uma ponte. De um lado está a exigência de ser perfeita. Do outro, a liberdade de ser humana.
Na prática, como viver esse processo com doçura e firmeza ao mesmo tempo? Primeiro, desacelere o julgamento. Você não é fracasso por não ter decidido tudo ainda. Você é pessoa em processo. Segundo, crie micro-rituais. Coisas repetíveis, simples e amorosas que sinalizam ao seu sistema que você está segura. Terceiro, divida o peso com quem pode sustentar junto. Terapia, rede de apoio, grupos, fé. Não precisa ser heroína solitária. A cura gosta de testemunhas gentis.
Quando a mente implorar por uma solução definitiva, devolva com presença. Você pode dizer para si: eu vou decidir quando a decisão puder nascer inteira. Até lá, eu me trato bem. Parece pouco, mas muda tudo. A decisão que nasce da pressa sai cara. A que nasce da presença se sustenta. É como cozinhar no fogo certo. Com pressa queima por fora e fica cru por dentro. Com calma, nutre. E sacia por mais tempo.
Lembre também de proteger as bordas do seu dia. Manhãs e noites são portais. Como você entra e como você sai do dia altera o meio. Evite acordar já se cobrando e dormir rolando culpa. Coloque algo pequeno e bom nesses dois pontos. Uma frase, um copo d’água, um estiramento, um salmo, uma música, um minuto de sol na pele. Pequenos reparos nas bordas evitam que o centro rasgue.
Você pode gostar de um exercício simples para os próximos sete dias. Toda manhã, escreva em uma linha: qual é o possível de hoje. Nada grandioso. Algo viável, concreto, que te faz bem. Ao fim do dia, escreva: o que me desgastou menos. Observe padrões. Talvez você perceba que te faz bem caminhar cinco minutos. Ou cozinhar para si. Ou ficar longe do celular até as nove. Talvez perceba que conversas no fim da noite te derrubam. Esses mapas são ouro. Eles te lembram que a cura acontece na vida comum, não só nos grandes eventos.
Se houver recaídas, acolha. Recaídas não invalidam avanços. São parte do desenho. Elas indicam onde ainda dói e onde você precisa fortalecer o cuidado. Use a recaída como recado. O que faltou? Água, pausa, verdade, limite, colo? O que foi demais? Expectativa, café, notícia ruim, solidão, pessoas invasivas? Com os recados na mão, ajuste a rota. Esse é o trabalho invisível que ninguém posta, mas que transforma destino.
Quanto às decisões que realmente precisam ser tomadas, confie que elas chegarão mais claras quando você estiver mais inteira. Você pode se fazer três perguntas antes de dizer sim ou não. Primeiro, esta decisão respeita a minha verdade atual. Segundo, eu consigo sustentá-la nos próximos dias sem me violentar. Terceiro, ela me aproxima da pessoa que estou me tornando. Se duas respostas forem sim, você tem um bom começo. Se não forem, talvez o melhor seja alongar o tempo. De novo, o que te desgasta menos costuma ser o caminho da sabedoria enquanto a cura cozinha em fogo brando.
Existe também o tema dos outros. Nem todo mundo vai entender seu ritmo. Está tudo bem. Quem te ama aprende o seu novo idioma. E se não aprender, você aprende a se proteger sem se endurecer. Dizer não é um ato de amor com o seu futuro. Você não precisa justificar cada limite. Precisa sustentar o que te faz bem. Quanto mais você se coloca como prioridade sem ferir ninguém, mais a vida te devolve segurança. Quando você se escolhe, o mundo aprende a te escolher de volta.
E por favor, não romantize o sofrimento. Não é preciso se provar para merecer a cura. Merecimento não se mede por dor. Se mede por humanidade. Você já é suficiente. A cura não chega para quem sofre mais. Ela chega para quem se cuida melhor. E cuidar melhor quase sempre significa simplificar. Diminuir o volume das opiniões alheias. Reduzir o feed.
Aumentar o silêncio certo. Ficar um pouco mais consigo, mas na sua companhia boa. Se a sua companhia ainda está áspera, trate-se como trataria uma criança que você ama. Com firmeza que protege e gentileza que aquieta.
Talvez hoje o possível seja só respirar com atenção por três minutos. Talvez seja organizar uma gaveta. Talvez seja mandar aquela mensagem para remarcar um compromisso e dormir mais cedo. Talvez seja cozinhar uma sopa e comer devagar. Talvez seja chorar no banho sem se xingar por isso. Tudo isso é cura. Na soma dos dias, esses gestos constroem o músculo da esperança. E esperança não é ilusão. É o corpo lembrando que ainda existe vida em você, mesmo depois do que doeu.
Se eu pudesse te deixar uma imagem para carregar no bolso, seria esta. Você, sentada à beira do mar, observando as ondas com os pés dentro d’água. Você não manda no mar. Mas pode ajustar a cadeira, cobrir os ombros se esfriar, beber água, sentar mais perto do sol, se afastar quando a maré sobe. Essa é a dança com a vida enquanto você cura. Você não controla tudo. Você cuida do que dá. E, cuidando do que dá, você atravessa.
Talvez um dia, sem alarde, você perceba que a dor mudou de lugar. Que o peso ficou mais leve. Que o riso voltou a caber. Você olha para trás e entende. Não foi um grande gesto que te salvou. Foram muitos pequenos. Foram os dias em que você escolheu o que te desgastava menos. Foram as noites em que você se cobriu de paciência. Foram as conversas sinceras que você finalmente teve. Foram as pausas. Foi o amor silencioso de continuar.
Se este texto encontrou você em um momento sensível, receba meu carinho. Escolha uma coisa pequena para hoje. Só uma. E deixe o resto para amanhã. A cura se faz assim, passo a passo, com respeito. Quando quiser, me conte nos comentários o que tem sido o possível para você nesses dias. Talvez sua partilha ilumine o caminho de outra mulher. E, se fizer sentido, compartilhe este texto com alguém que precisa lembrar que não está atrasada. Está apenas viva. E isso já é o começo de toda cura.
Com amor,
Girlande Oliveira
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